dos espaços entre as palavras
Monday 4 October 2021
Imortal
"Sabes, acho que o amor nunca morre." - "Porque nunca esteve vivo?" - perguntas na tua chico-expertise de sempre, fugindo do romantismo para a semântica, escondendo o que sabes que disse na incerteza de todas as palavras. Sorrindo abano a cabeça devagarinho, e toco-te ao de leve no braço, apenas um fantasma de um carinho. "Sabes, acho que o amor nunca morre." - "Estás a repetir-te, já o disseste antes." - "Continuarei a repetir-me, há coisas que se devem dizer não uma nem duas mas incontáveis vezes, até que fiquem escritas na própria textura da realidade, uma mancha indelével na seda pura do existir." - "Mas nós morremos, somos apenas pessoas, um corpo que se gasta em cada dia" - Acendo um cigarro, puxo a minha morte uns minutos mais para perto de mim, e finjo que sei fazer anéis de fumo em vez de responder. Lá fora passam os carros e ladram os cães e escurece, devagar. "É noite cada vez mais cedo" - Apontas em direção ao sol que já desce, correndo, para o horizonte - "Amanhã ergue-se de novo, e será dia outra vez e outra e outra, um ciclo eterno de morte e renascimento. Mas o amor, esse nunca morre." - "Assim o dizes, mas não acredito." - "Então nunca amaste ninguém." - "Estou aqui nos teus braços." - "Lábios nos lábios, cabelo na minha boca, a tua pele na minha.. Mas isso não é amor, é corpo." - "E amor não é corpo também?" - "Amor é alma. Apenas e só alma, em fogo lavado de lágrimas." - "Só se torna amor com o sofrimento?" - "Só." - "Isso é ridículo! Há amores felizes, nós somos felizes!" - "Mas nós não nos amamos um ao outro, nós amamos quem somos um no outro." - "E eu é que me escondo na semântica?" - "Amor não têm semântica, nem léxico nem ortografia, amor é. Apenas é, imortalmente é." - Levanto-me, apago o meio fumado cigarro no cinzeiro e agarro nas minhas calças amarrotadas aos pé da cama - "Vais embora?" - Sinto o medo na tua voz, o medo do frio de um cama onde se dorme sozinho, o medo de uma manhã em que apenas a parede nos olha nos olhos - "Não sei." - Chegas-te a mim, o teu corpo ainda nu deslizando pela cama até que a tua mão me agarra o pulso - "Não vás. Não saberia suportar o amanhã sem ti aqui." - "Não vou. Já te disse que o amor não morre e também não saberia como existir sem o teu sorriso." - Puxas-me de volta à cama, não como quem têm fome de mim, apesar da insistência das tuas mãos, da forma dos teus seios que me apontam direitos ao coração, do remexer das tuas ancas nos lençóis, não, puxas-me com um calor que não é esse dos corpos que se conhecem e dançam juntos a mesma musica mas o calor de uma alma que já não existe fora de um nós que somos toda a existência num só beijo. Deixo-me arrastar para baixo, para junto de ti, pego-te, os braços de volta dos ombros, a minha pele parecendo que se estica para tocar em mais da tua, enfio o meu nariz no teu cabelo e choro, sem tristeza. "Não te vou deixar, és demasiado de mim." - "Amo-te" dizes, a tua boca colada ao meu peito - "Amo-te" - repetes, como se eu pudesse não ter ouvido, como se eu pudesse não o saber - "Amo-te" - respondo, e levo os meus lábios aos teus, tocando-os levemente e lentamente abrindo-os, beijando-te como se beijava no liceu, com fome de provar toda a tua boca, as minhas calças já nas tuas mãos, saindo antes sequer de terem sido postas completamente, os teus braços despindo-me e os teus lábios beijando-me e o teu respirar embalando-me para dentro de ti. Fizemos amor, com paixão, carinho, os nossos corpos suados numa perfeita sintonia de pequenos gemidos e respiração ofegante, dançando uma valsa a que só os deuses assistiram - "Amo-te" - digo de novo, e depois repito-o, duas, três, quatro vezes, a voz transformando-se num sussurro quase inaudível que acompanha o teu suave ressonar, a tua cabeça pousada no meu peito como se eu fosse uma almofada confortável, os teus olhos fechados e esse sorriso sempre na ponta dos teus lábios, dizendo-me - "Sabes, acho que o amor nunca morre."
Friday 15 January 2021
manhã [incompleto]
fomos uma manhã de segunda-feira, desperdiçada em cafés e fingir que estávamos acordados que chegue para trabalhar. Devíamos ter sido uma tarde de sexta, para aproveitarmos toda aquela força de ter o fim de semana a chegar mas não.
Já era quase de noite, quando tropecei no teu riso quase estridente numa rua perdida no meio da aldeia e as horas não perdoaram o espaço que demorou o meu passo a encontrar o teu. Tivesse eu voltado atrás quando pelo ombro te vi os olhos a brilharem à luz meio enevoada do sol, em vez de ter seguido por aquela rua idiota, mão dada com um espantalho, e teria sido tudo diferente. Pergunto-me que foi que viste em mim, no meu andar, no meu olhar, no meu ser que te puxou, que te fez olhar na minha direcção enquanto eu olhava na tua, aquele primeiro cruzar de olhos que tão fatídico se tornou meses depois.
Wednesday 5 August 2020
último
Friday 26 June 2020
Colher
Thursday 20 February 2020
freedom
Monday 17 June 2019
luz
Tuesday 11 June 2019
cambaleante
...escorregava avenida abaixo, os passos tortos, trocados, cansados, gastos. Olhava em frente sem ver nada, os olhos perdidos num sonho embriagado e os lábios falando sozinhos, repetindo um nome, sempre o mesmo nome, vezes e vezes e vezes sem conta, como quem chama, como quem chora, como quem ama, como quem odeia, como quem canta, o mesmo nome, repetido em todas as entoações, sempre a meia voz, tão de surdina que quem por ele passava mal ouvia, ouvia apenas a sugestão do som do nome, mas ele não o dizia para quem passava mas sim para a face que via no seu sonho acordado. Era cedo e as pessoas transportavam aquela cara de segunda-feira de manhã, aquele peso de antecipação da semana inteira às costas. Desviavam-se dele, as pessoas, algumas por nojo mas outras demasiado automaticamente para sentirem o cheiro a urina seca, para repararem no vomitado que lhe cobria as pontas dos sapatos, nas folhas e flores enfiadas nos cabelos. Mas desviavam-se, deixavam-no prosseguir em direcção à miragem que apenas ele via, lá ao fundo da avenida e ele ia, escorregando alcatrão passeio alcatrão passeio abaixo.
Friday 24 May 2019
título
Tossia com frequência, aquelas tosses profundas que parecem ameaçar sempre a vinda de um pulmão atrás da expectoração, o seu corpo magro a torcer como uma toalha ao vento e a ameaça de lágrimas nos cantos dos olhos e o cigarro fortemente preso entre o indicador e o dedo médio carregados de manchas amarelas. A tosse passa, limpa os olhos com a manga esquerda do casaco e enfia de novo o cigarro na boca, puxa mais um bocado de alcatrão e nicotina e dióxidos e trióxidos de carbonos vários pela garganta abaixo.
Os passos levam-no pela rua abaixo, em Lisboa é sempre rua abaixo ou rua acima, parece não existir uma única rua horizontal em toda a cidade, olhos escondidos debaixo das lentes pretas de uns óculos de sol desnecessários neste tempo sujo. Acaba o cigarro, atirando a beata para uma sarjeta, e levanta as lentes do chão, olhando em volta. Ao fundo, mais uns dez passos, um café. Dirige-se, com propósito, até lá e entra. O café está vazio, excepto um velho que lê o jornal a um canto e a senhora, meia idade, mais gorda que magra e com aquele corte de cabelo que já não é comprido mas ainda não é curto, que está atrás do balcão lavando, sabe deus por qual milésima vez, um copo de imperial.
Ele tosse, como quem prepara a garganta para falar após um período de silencio, e pede um café e um copo de tinto. Agarra nos dois vai sentar-se na única mesa lá fora, olhando em direcção aos prédios que escondem o rio.
Bebe o café de um trago, dá o ultimo bafo do cigarro que acendera ao chegar lá fora, apagando a beata no cinzeiro de metal. Levanta o copo, como quem faz um brinde e parece murmurar algo inaudível antes de o levar à boca e esvaziar num só movimento. Olhando para dentro repara na mulher olhando-o. Sorri e faz sinal, a apontar o copo vazio, pedindo mais um. Do bolso sai um pequeno caderno, de outro bolso uma caneta, da cara os óculos de sol. Tudo sobre a mesa enquanto recolhe da mão da senhora o novo copo. O caderno fica aberto sobre a mesa, uma folha branca à excepção de uma só palavra, ao topo, ao centro, um titulo. A caneta na mão as vezes descendo quase até à folha mas o movimento pára sempre antes que tinta e papel se juntem e a caneta sobe de novo e ele olha mais um pouco e frente e depois num gesto brusco, furioso, volta a cair quase até à folha e de novo detém-se, milímetros antes de a tocar.
Ele suspira, pousa a caneta e fuma mais um cigarro, bebe mais um pouco do vinho, pela primeira vez como se o provasse. Acabado o cigarro e o copo, o caderno volta ao bolso, a caneta a outro bolso, o maço do tabaco a outro bolso. Entra, levando o copo sujo e pergunta quanto deve, qual a despesa. Paga com moedas, e vira costas e sai antes que a senhora tenha tempo de devolver os 10 cêntimos a mais que deixou. Olha de relance rua acima mas nem parece que os seus olhos se fixem em coisa nenhuma. Desce de novo, mais rápido que antes como se o vinho o tivesse recordado de algo urgente para fazer. Não fuma, as mãos vão enfiadas fundo nos bolsos, os óculos de sol de novo na cara, e vira a esquina e desaparece.
Um dia talvez volte aquele café e peça mais um copo de vinho, um dia talvez acabe o que tentava escrever, um dia talvez apareça com um sorriso na cara ao fundo da rua e o transporte consigo, usando-o com mais orgulho ainda que aquele com que usa os óculos e o cabelo.
Thursday 2 May 2019
Ressaca
Respira a custo, inspira umas quatro oito vezes e regulariza-se o input/output de ar lembrando-o do resto das dores, as pernas, finas como estacas, pesadas como colunatas gregas, músculos doridos e movimentos fracos descoordenados: senta-se na cama e enrola um cigarro, de olhos quase fechados, tacteando à procura das coisas na semiluz que escapa dos estores tão fechados quanto os longos anos sem reparações os permitem estar.
De pés no chão e cigarro na boca, aceso, empurra-se para fora da cama, para longe do único sitio onde ainda se sente realmente bem. Arrasta-se até a cozinha, prepara uma caneca de café, forte, sem açúcar, bebe-o de um trago ainda antes de acabar o cigarro. Deixa a beata caída na sanita e passa a cara por água fria para limpar os medos e suores e frios da noite de pesadelos. Quando acaba de se vestir, não fora as olheiras e ninguém o consideraria menos do que um membro respeitável da sociedade. Certos dias isso diverte-o, noutros irrita-o ou entristece-o mas na maior parte dos dias, nem pensa nessas coisas. Aparar a barba, pentear o cabelo, remover os pelos do nariz e das orelhas, vestir o fato e gravata da praxe. Tudo isso é automático, tão parte do ritual matinal como as dores e o cigarro. Faz outro, em casa fuma sempre de enrolar para poupar dinheiro, porque gosta do controlo que tem sobre a quantidade e o tamanho ou apenas porque gosta do sabor. Cigarro no canto da boca, agarra as chaves, mete os óculos de sol, olha em volta do quarto para ter a certeza de não se ter esquecido de nada e sai casa fora, passeando a ressaca e o cansaço que já fazem parte de si.
Amanhã, acordará de novo de ressaca e fumará mais um cigarro após o ataque de tosse e no dia seguinte e no dia seguinte e no dia seguinte, até que um dia não acordará ou o ataque será tão forte que tossirá até os pulmões ou não chegará sequer a casa, interrompido o seu sofrimento por um autocarro conduzido por um motorista que, ao contrario dele, nunca largou a bebida e por isso nunca encontrou a ressaca de existir.
Wednesday 27 March 2019
homem
Monday 4 March 2019
saudades
Escrevo-te aqui, onde nunca me irás ler, as tuas batalhas são tuas para travar e nas minhas só eu posso lutar.
Sunday 17 February 2019
método
Friday 8 February 2019
inexistimos
Sem o saber, fomos cuspidos para o chão por uma qualquer diva de um tempo perdido, como um espaço em branco entre duas notas. Sonhávamos com aquilo que nunca poderíamos ter, sabendo que, certamente, o iríamos conseguir alcançar. Não encontrando em nós forças para continuar a ser, decidimos desistir de toda e qualquer tentativa de sonhar. Hoje, vivemos apenas para pagar as dividas que nossos pais nos deixaram e aumentar aquelas que deixaremos aos nossos filhos. Ah o mal do mundo é ser mundo, tal como o mal do homem, é ser homem. Se nada fossemos, nada nos afectaria, e poderíamos, livres, estrebuchar no alheamento inerente à condição de nada sermos. A fama, meus amigos, é algo que se conquista. A dor, meus inimigos, é algo que oferecemos livremente a quem a quiser aceitar. Lembrai-vos, bíblicos seres que habitam este mundo cruel, que a dor é nossa, apenas se a quisermos. Nada que não desejemos nos poderá fazer sofrer. Ah quão bom é achar na dor apenas um estado de espírito e não ver nela a sua verdadeira essência : um modo de vida. Consumidos pela ganancia verde, somos cinzentos ao passar pela estrada negra da vida.(e aqui eis a verdadeira razão por detrás de tudo. Nada ser é tudo quanto faz tudo o que é, ser.).
Não, nunca fomos de verdade. No entanto, e sabendo quão frágil é a realidade, nada do que se diz pode fazer sentido. Eu não sou mais do que a sombra dos sonhos que tive num passado distante, e não desejo mais do que um dia, vir a fazer sombra aos sonhos que sonhei. Num mundo gélido, apenas o sol tocando-nos, quase eroticamente, nas costas, é real. Acreditem-me. Eu sei. E o amor. O amor.. Que dizer dele? É um Deus, num mundo onde os deuses morreram, um sonho, num mundo que perdeu o dom de sonhar, dinheiro para um pobre, e alegria para um rico. Sou feliz apenas por saber que poderia ser bem mais infeliz, ou serei infeliz apenas por saber que poderia ser bem mais feliz? Nada importa, bem vistas as coisas, porque no fundo, bem lá no fundo, onde realmente interessa:
não fomos.
[18|05|2006]
Tuesday 5 February 2019
existência
Tuesday 29 January 2019
extinção
Mas quem para sempre perde as lágrimas dos olhos perde também para sempre o sorriso dos lábios.
Thursday 27 December 2018
lágrima
Friday 7 September 2018
bala
"Estás pronto?"
A voz dela treme ligeiramente, e a minha deve tremer também quando respondo
"Tanto quanto possível, diria eu."
"Desculpa, eu..."
"Não fales. Não vale a pena. Eu sei. E sim, também eu te amo."
Ela dispara. Tudo fica lento, vejo a bala a ser ejectada em fúria do cano da arma e lentamente a dirigir-se a mim, e sinto que um milhão de anos separam o clarão do estrondo e outro isso de sentir a bala a tocar-me a pele. Sinto-me penetrado, "acho que nunca fui tão mulher como agora" penso. Assim que a bala passar a pele e os ossos, e como dói!, ira bater no coração e numa fracção de segundo, estarei morto. Tento sorrir, não sei se o consegui, mas tentei. Gostava que ela se lembrasse de mim assim, a sorrir-lhe. Ah, a bala chega e eu..
vou.
Tuesday 14 August 2018
Fábrica
Tuesday 7 August 2018
férias
descrever cada metro de linha do comboio como se o tivesse visto, como se tivesse olhado-o horas a fio contando as lâminas de relva, apontadas ao Céu, esperando talvez por aqueles que caem. escreverei-os exactamente como são, na minha memória que tenha deles, fraca, apagada, escura, cheia de detalhes quê não existiam lá e que por isso mesmo me são muito mais reais. contarei cada episódio, todos os montes subidos e os descidos, todos os mergulhos e todas as refeições! não esquecerei um único detalhe, até à cor dos olhos do quarto pescador (de lampreias) à esquerda na fila de baixo na foto pendurada no café da vila que não chegamos a encontrar. absorvemos então tudo, e mais tarde, suaremos e salivaremos sobre secretas sebentas sedentas de saber. come tudo o que te aparecer, vive o resto do ano inteiro nestas semanas, aproveita cada segundo e suga-lhe todos os milímetros de felicidade que neles encontrares, mas sem criar.
Wednesday 14 March 2018
Mãe
Tuesday 6 March 2018
Do espaço entre as palavras
é neste espaço, neste vazio que fica entre a letra que acaba uma palavra e a letra que começa a próxima, que existe o significado daquilo que se escreve. É o vazio entre os sons, o silêncio entre fonemas, que está realmente carregado de sentido. As palavras são, em si, ocas, sem qualquer peso ou substância, só letras atiradas ao papel que de nada servem e para nada servem. Mas nos espaços entre elas existe todo o universo. Um silêncio entre duas palavras comporta uma enciclopédia de possibilidades, uma possibilidade de tudo que uma palavra colapsará numa certeza de tão pouco quando ela abraçar.
Monday 26 February 2018
Profeta
Começara anos antes. Talvez cinco, dez ou vinte ninguém sabia ao certo. A quem vivia perto do monte parecia-lhe que ele sempre ali estivera, com a sua roupa velha mas ainda impecável, a sua barba comprida e os longos cabelos soltos, a sua voz calma e pesada murmurando e rezando. As crianças temiam-no, os adultos ignoravam-no e os idosos respeitavam-no, levando-lhe oferendas de comida semanalmente. Bom, alguns. Outros escreviam ao presidente da câmara pedindo-lhe que removesse dali o mendigo. Infelizmente para eles, o monte era propriedade privada e os donos do mesmo nunca fizeram qualquer questão de o remover de lá. Talvez por gostarem da ideia de ter um místico na sua propriedade ou porque com ele lá, ninguém se atrevia a assaltar a casa quase abandonada que lá mantinham. Os donos do terreno nunca confessaram a ninguém em qual das facções se encontravam, nem após a revelação, quando entrevistados por uma qualquer cadeia de televisão. Limitaram-se a dizer que como nunca tinham tido nenhuma razão de queixa com ele, o deixaram por lá ficar. Esse mesmo canal de televisão que tinha entrevistado, sem conseguir dai retirar grande coisa para uma manchete bombástica, os donos do terreno, em busca de um escândalo ou de uma tragédia para um cabeçalho daqueles que ficam em rodapé 90% do telejornal prendendo as pessoas ao ecrã na esperança de o entender, fizeram uma investigação a fundo (más línguas falam de contactos dentro da policia que teriam fornecido informação que deveria ser confidencial) e descobriram a história dele.
Conseguiram, para grande felicidade do director de programação, não só um escândalo como também uma tragédia. O que, obviamente, levou a acesas discussões sobre qual o ângulo que deveriam explorar. Eventualmente o lado da tragédia ganhou, e o cabeçalho de rodapé foi "Passado trágico leva homem para o monte durante 10 anos". Na realidade, 10 anos foi uma invenção (ou para ser mais simpático, uma aproximação) feita a partir das datas da tragédia. Podiam ser até 15 anos. Ou apenas 5. O 10 foi escolhido por ser um numero bonito e como ninguém sabia de qualquer modo não lhes pareceu importante a exactidão. Anos mais tarde, ao analisar a situação com a sabedoria da idade avançada, o director de programas admitiria que "dezenas de anos" ou mesmo apenas "durante anos" mas também que era indiferente. A audiência desse telejornal fora a melhor do mês e esteve no topo das do ano, só batida pelas eleições.
Não interessa qual a tragédia e muito menos qual o escândalo, basta saber que ele perdeu tudo o que tinha, família, bens, emprego, futuro. E ao encontrar-se assim, só, desesperado e sem muitas hipóteses de voltar a fazer parte da sociedade, graças ao escândalo, ele fugiu. Fugiu a pé, pelo pais adentro. E encontrou, num monte algures uma caverna onde se escondeu de tudo : da sociedade, da policia, dos jornais, até do seu nome. Se ele contasse algo sobre os primeiros tempos do seu exílio, contaria como passou os primeiros meses lavado em lágrimas, tremendo de medo e frio, amaldiçoando deuses e deusas em que nunca acreditou, rezando aos mesmos que tinha amaldiçoado e a outros novos que havia inventado só para os poder amaldiçoar de novo. Disse, berrando por vezes, sussurrando ou chorando noutras, todas as heresias quê conseguiu imaginar e recitou orações atrás de orações, umas curtas, de uma frase apenas, outras imensas de tal maneira que precisou de passar dias inteiros sem dormir para as terminar.
Um dia, contaria ele se relatasse alguma vez os seus tormentos no exílio, acorda no silêncio eterno da caverna, olha o sol subindo devagar no céu e na sua cabeça, no seu coração corpo alma já nada dói. Existe apenas um vazio, um buraco de nada que lhe enche o tudo, um silêncio tão grande e eterno dentro como o de fora. Nesse dia, e naqueles que se seguiram, não se mexeu mais do que uma curta viagem até ao topo do monte, onde se senta, pernas cruzadas "à chinês" como convém a qualquer místico que se preze, e deixa-se ficar, esperando algo que nem ele sabia o quê. Passa uma semana assim, comendo apenas ao fim do dia um pedaço das suas cada vez mais parcas reservas. Contou 7 nascimentos e 7 mortes do sol antes que algo acontecesse. Ao acordar com o oitavo nascimento, no vazio absoluto que carregava em si, a primeira palavra apareceu : "Deus". Repetiu os dias anteriores e a cada nascimento uma nova palavra "sou", "eu", "em", "mim", "está". Ao décimo quarto dia nenhuma nova palavra se juntou as outras, nem ao décimo quinto. Ao décimo sexto morrer do sol percebeu que não viriam mais palavras assim e após um breve período em que sentiu algo que antes teria sabido identificar como frustração mas para que agora já não tinha palavra que descrevesse, meditou sobre a frase que se tinha tornado o total do seu conhecimento : "Deus sou eu, em mim está". "O que está?" Perguntou-se, vezes e vezes sem conta até que, com uma gargalhada que ecoou na caverna percebeu : "em mim está tudo. O princípio, o fim, o conhecimento e a ignorância, a sabedoria e a ingenuidade, a dor e o prazer, a luz e a escuridão". Repetiu este mantra na sua cabeça vezes sem conta e depois, roucamente como quem reaprende a falar, em voz alta. E, de cada vez que o repetia, o seu vazio enchia-se um pouco mais de memórias, de coisas que soubera e esquecera, do nome das coisas, fórmulas, algoritmos, cores, sabores, imagens, sentimentos. Eventualmente o seu vazio estava cheio com tudo o que alguma vez soubera (e era muito esse tudo, fora sempre estudioso e curioso antes, daquelas crianças que se fechavam na biblioteca a decorar a enciclopédia enquanto as outras se divertiram jogando à apanhada ou à macaca ou à bola ou ao bate-pé ou a qualquer um desses jogos infantis) mas continuou a entoar o seu novo mantra e parecia-lhe que agora aprendia coisas que nunca havia aprendido, que conhecia, intimamente, sensações que nunca experimentara, livros que nunca lera, todo o curso da história de países dos quais nem o nome alguma vez ouvira. Parou apenas ao desmaiar de exaustão, não saberia dizer quanto tempo depois de ter começado. Ao acordar, ainda no topo do monte, a sensação de vazio que antes o enchera, fazendo-o sentir que poderia a qualquer instante colapsar sobre si mesmo, como um prédio a implodir, fora substituída pela sensação inversa; sentia-se cheio ao ponto de rebentar com tanta coisa. Desceu à caverna e comeu a última das suas refeições, sem medo de passar fome pois sabia, sem que conseguisse explicar porque, que em breve teria mais comida.
Nesse dia entreteve-se a percorrer os novos labirintos intermináveis da sua mente, tentado chegar ao fim do que agora sabia, mas por mais corredores pelos quais corresse, não encontrou nenhum fim. Nesse dia os idosos vieram pela primeira vez. Uma senhora, nos seus noventa e poucos anos (ele sabia dizer quantos mas não o fez) explicou que tinha tido um sonho em que uma luz descera do céu e incendiara o monte num fogo sem chama e, nesse sonho, uma voz lhe havia falado pedindo, "educada e formalmente" que levasse ao monte comida pois Deus escolhera aí habitar. Contou, a nonagenária, o sonho as suas amigas que a sabiam sensível a essas coisas (não havia ela sentido já anjos sobrevoando a pacata aldeia antes, no dia da morte de alguém?) e elas ajudaram-na, fazendo um cesto de comida e partilhando com ela o fardo de a levar até ao topo do monte.
Ele ouviu a idosa senhora e prostrou-se de joelhos ao agradecer. Soube, nesse instante, que a senhora morreria no seu sono nessa mesma noite, uma morte pacífica, uma viagem esperada até ao seu merecido descanso, e assim lhe o disse. A idosa, apesar de assustada a início, quando se lembrou de quanto já sofrera e de quanto já perdera (tendo sobrevivido aos filhos e aos netos) sorriu e agradeceu. Ele, mais por sentir que ela assim o desejava do que por vontade própria, abençoou-a, dizendo "vai em paz para junto daqueles que te ainda te amam até depois da morte".
Foi esse o primeiro sinal da sua divindade. Nessa noite, a idosa morreu em paz. Os mais cépticos dos aldeões disseram que adivinhar a morte de alguém com aquela idade não era nada de miraculoso ou fantástico, especialmente sabendo que ela tinha feito muito mais exercício que aquilo a que estava habituada. Entre os menos cépticos houve aqueles que começaram a tradição de todos os três dias levar uma cesta de comida ao sagrado homem do monte, como começaram a chamar-lhe.
Passou meses ou mesmo anos a catalogar, organizar, arquivar e memorizar cada cantinho do seu saber. Começou por libertar uma sala inteira e com o poder infinito que se têm nos sonhos, fez dela um gigante arquivo, à antiga, fileiras intermináveis de pequenos armários empilhados de metal, cada gaveta contendo uma centena de pequenos cartões com uma palavra seguida de números. Ou ficaram assim mais tarde, naquele momento estavam vazios, mas à medida que os dias meses anos foram passando ele ia escrevendo. Alguns genéricos "Alquimia, 23-26" outros mais específicos "Mercúrio no termómetro, 72, 33, 13, 88, 33-35": Alquimia da sala 23 à sala 26. Mercúrio, no termómetro: sala 72, estante 33, prateleira 13, livro 88, páginas 33-35.
No iniciou demorava um dia para conseguir encontrar e arquivar cada palavra mas a medida que foi avançando no labirinto da sua mente foi-se tornando mais eficaz e para o fim já enchia um armário inteiro num só dia. Quando sentiu que tinha terminado voltou ao topo do monte, pensando "e agora?". Da vez seguinte que os idosos apareceram com a comida fez um pedido: que lhe trouxessem meios para escrever. Um deles, ex-poeta, procurou na sua arrecadação por umas máquina de escrever e juntos compraram resmas de papel, que foram entregues três dias depois. Ele agradeceu, aconselhando ao ex-poeta que tentasse de novo publicar aquele livro que escrevera 20 anos antes, porque agora o mundo estaria preparado para o ler (o livro, "Sensações do Mar" foi publicado quase imediatamente e, ironia das ironias, o velho de quase oitenta anos foi considerado o melhor novo poeta do ano).
Ele começou a escrever. Folhas atrás de folhas atrás de folhas. A início ideias soltas que não tinham entre si qualquer ligação, tanto compunha uma ópera sobre uma fábrica de automóveis como uma dissertação sobre o verdadeiro significado da palavra "sentir" como um novo algoritmo para calcular números primos. Depois de retirar do seu sistema toda essa informação que considerava inútil, começou com os escritos místicos que eventualmente fariam dele o profeta de uma nova religiosidade.
Parábola do homem cansado, alegoria da fé impossível, metáfora do sono do demónio, hipérbole do deus ausente. Tudo isto ele escreveu nesses primeiros dias, batendo furiosamente nas teclas rijas da velha máquina de escrever, quase em transe, inundado de uma vontade de tudo dizer. Nunca fora escritor, mesmo na escola sempre detestara os exercícios de escrita de composições, sendo uma pessoa com pouco ou nenhum jeito para transpor em palavras o que sentia, e por isso esta nova sensação de quase dor que lhe apertava o coração se não escrevesse a cada segundo era para ele nova. Escrevia e, amarrotando as folhas atirava-as para um caixote de lixo (metafórico, na realidade um canto da caverna onde empilhava os restos e as caixas de ração), achando tudo digno apenas de se juntar ao esgoto. Infelizmente, um dos idosos que dali levava todo o lixo, guardou todos os escritos dele é, religiosamente os guardava numa pequena arca de madeira que estava em sua casa e só por isso sabemos hoje o que ele escreveu antes de finalmente se decidir a escrever aquela que seria a sua obra prima, a sua magnus opus, "de Deus".
[este texto encontra-se incompleto. É da natureza de todas as coisas humanas, e tendo sido escrito por um humano é humano também o texto, serem sempre incompletas até quando chegam a um fim. E seria divina blasfémia dar um fim a um texto que não o têm. Por isso acaba aqui, no meio de nada, entre uma ideia e a próxima, o relato de Quid'Est, aquele que é. Sem que se tenha aprofundado nada sobre a sua vida, a sua obra, a sua mensagem ou a sua história. De certa forma, ele próprio preferiria assim : que os outros que vierem depois se dêem ao trabalho de a acabar na sua mente se assim o desejarem. Que cada um busque e encontre em si o verdadeiro fim das palavras e da vida dele.]
Friday 16 February 2018
Se..
Wednesday 7 February 2018
Ampulheta
Monday 22 January 2018
torre
A velha torre de mármore branco ergue-se solitária no meio da floresta, como um osso que caiu do céu e se deixou ali ficar. A esta distância consigo imaginar-lhe a pele porosa e ver-me subindo pela medula até ao topo, seria eu também tutano, cuspindo glóbulos, brancos e vermelhos, seria eu mesmo plaqueta estancando a hemorragia. Imagino-a como ela teria sido no auge de tudo, a torre branca, erguendo-se até que as suas antenas, hoje há muito enferrujadas pela chuva e quebradas pelos ventos, tocassem ao de leve nas nuvens, acariciando o paraíso celeste, como um ex-amante que anseia ainda pela pele de quem já não é seu. Milhões de pessoas devem ter subido os elevadores lá dentro, diariamente, provavelmente sem se aperceberem de estarem a trepar em direcção a Deus e à santidade com cada andar que passavam, sem saberem o quão impressionante é viver numa torre que liga a terra ao infinito. Hoje, a torre é apenas um osso no chão, mais uma fractura exposta, relato silencioso do que fora antes. O universo provou-se indiferente aquilo que um homem sente, fez-se faca, bisturi, e com um corte preciso, erradicou toda a humanidade num só gesto. Biliões de pessoas mortas, num minuto apenas. Safaram-se uns poucos, como os meus antepassados, que por acaso do destino se encontravam fora da terra nesse dia em que o Sol decidiu que chegava de ter vida junto a si, no dia em que o Sol decidiu nada existir ainda que valesse a pena manter e disse, de si para si, "está na hora de explodir". Em termos cósmicos, a explosão de radiação do Sol da Terra nem fora assim tão grande, diariamente acontecem, só na nossa galáxia, milhares de explosões mais fortes. Foi, no entanto, súbita. Inesperada. Entre os que ficaram, astronautas, uns quantos que por um acaso do destino ou outro, se encontravam num abrigo à prova de radiação (e como ficou provado que a paranóia dos humanos tinha razão de ser!) ou debaixo do mar, especulou-se, futilmente, durante largas dezenas de anos, sobre se de algum modo a explosão fora causada por pessoas. Existia o conhecimento teórico de como despoletar uma explosão de radiação e existia a tecnologia para o fazer. O que não devia nunca ter existido era a vontade de erradicar da terra toda a gente. De centenas de biliões de pessoas para pouco mais que meio milhar em segundos. E agora, descendentes dos descendentes da terra decadente, caminhamos por ai, quase primitivos, após perder tudo, pelas ruínas esquecidas do um mundo que já foi. A torra de mármore branco ergue-se, como um osso espetado na floresta e daqui, vejo-a e sonho com o que era junto à fogueira que aquece o fim da tarde. Dentro de uns dias chegaremos lá, a primeira excursão à torre desde que o mundo morreu...